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E aí? Tudo bem? (Manifesto de um cineasta negro)

Atualizado: 5 de jun. de 2020


Uma das coisas mais difíceis de se mudar na vida é um hábito. “Tudo bem?” é a pergunta que eu faço todos os dias pra quem eu converso. Alguma vezes o interesse é genuíno, quero realmente saber se aquela minha amiga, amigo, familiar ou colega de trabalho está bem, mas às vezes é automático. Sempre que a pergunta sai, eu mesmo respondo mentalmente: “Como pode estar tudo bem?”


Como pode estar tudo bem se eu vivo num país onde 57 milhões de pessoas escolheram ser governadas por alguém que tinha o objetivo de matar uns trinta mil, “fazendo o que o regime militar não fez”? Parabéns! O mito alcançou a meta. Como pode estar tudo bem se esse presidente exalta um torturador, único militar condenado pelos seus crimes na ditadura, conhecido por suas maldades contra mulheres e crianças? Essas milhões de pessoas olharam pra um ser homofóbico, misógino, corrupto e racista, alguém que mede negros por arrobas, e falaram: “Tudo bem”.


Como pode estar tudo bem se eu vivo no último país a abolir oficialmente a escravidão nas Américas, mas onde as pessoas dizer que cota é vitimismo, que racismo é mimimi e que “todas as vidas importam.” Será? A vida de alguém que é acordado com um coturno na porta de sua casa, sem mandado judicial apenas porque mora numa favela, realmente importa? A vida dos policiais que se suicidam em um número incomparável no mundo importa? As mortes provocadas por esses mesmos policiais nas favelas e periferias Brasil afora. Elas importam?


Não pode estar tudo bem se, dos 885 mortos em ações policiais no primeiro semestre do ano passado, 711 eram negros e pardos. 80% deles. Um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no Brasil. Tá tudo bem pra família do Dyogo, que teve que sepultar o garoto de 16 anos? Tá tudo bem na cabeça do meu amigo Júlio, preso por 9 anos sem provas? Tudo bem pra quem teve que enterrar a Margareth, de 17 anos, que morreu com dez tiros durante um confronto entre polícia e traficantes? Ela estava com o filho de colo, ferido no pé. Como perguntar isso pra família do Evaldo, da Marielle, do João Pedro, da Ágatha, de oito anos?


Vou fazer um exercício que começa hoje. Só volto a perguntar se está tudo bem quando pararem de nos matar. Quando metade dos meus colegas de trabalho forem negros. Quando 54% das pessoas em um restaurante bacana for negra. Quando metade dos filmes dirigidos no Brasil forem por mulheres e homens negros, ao contrário do último registro da falecida Ancine, que revelou que 84% dos filmes nacionais foram dirigidos por homens brancos e 13% por mulheres brancas. Só 2% tinham sido dirigido por homens negros e nenhum por uma mulher negra. 74% dos roteiristas, nesse mesmo registro, eram homens brancos e 26% mulheres brancas. Homens negros? 4%. Mulheres negras, zero. Não pode estar tudo bem se “a pauta é o racismo no Brasil”, como escrito na tela da Globo News e 7 jornalistas brancos se reúnem nessa discussão. Não pode estar tudo bem se você não consegue citar meia dúzia de escritores negros, de médicos, engenheiros, juízes, jornalistas, artistas, empresários...


Na África do Sul, país que eu tenho um carinho todo especial e onde fiz grandes amigos, todos os problemas sociais apontam pra uma mesma direção: o Apartheid. Qualquer um que fale uma das onze línguas oficiais naquele país vão ter essa mesma resposta. A violência, a desigualdade social, a carência de educação gratuita de qualidades, escassez de trabalho, falta de moradia digna e o racismo, o preconceito e a fome… Em algum momento da fala sobre qualquer um desses assuntos, eles vão citar o regime de segregação racial que durou de 1948 a 1994. Uma ferida ainda aberta, que cheira mal, mas está lá, visível e dolorida, mas eles sabem o nome.


Nossa ferida se chama escravidão. Pode falar de colonialismo, de corrupção, de exploração européia, do que quiser, mas todos os nossos problemas sociais têm origens numa ferida ainda aberta que apodreceu, tomou conta do corpo e impede que avancemos na direção de nos tornarmos uma Nação de verdade. O primeiro passo pra curar uma ferida é olhar pra ela. Saber que ela existe. Dói. Esfregar dói, limpar dói, tratar dói. Mas é muito pior deixar pra lá. Saiba que, quando a vida voltar ao normal, se é que já foi normal um dia, e você puder voltar a frequentar bares, teatros, cinemas, cadeiras das universidades, restaurantes e museus, essa ferida vai estar lá. Faça também um exercício e veja se 54% dos frequentadores são negros. Se não forem, é a ferida da escravidão latejando, pedindo pra ser tratada. Quem sabe um dia eu possa voltar a perguntar: “E aí, tudo bem?”


Leo de Souza Santos,

filho do Levi, que foi de Jequié na Bahia morar na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro aos 7 anos de idade. Filho da Sirlene, nascida e criada em Costa Barros, hoje um dos lugares mais violentos do Rio. Agradeço a eles pelas lutas e pelas oportunidades que me deram. Hoje sou parte dos 2% dos roteiristas negros no Brasil. Vamos ser 50, porque nossas vidas importam.



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